Grupo de amigos resgata memória ferroviária e transforma passeios em atividade ecológica pela Cuesta
- Notícias Ferroviárias
- 24 de abr. de 2016
- 9 min de leitura

Rita de Cássia Cornélio || JCNET - Jornal da Cidade de Bauru
Domingo sim, domingo não, um grupo de amigos batizado de “Aventureiros do Túnel” sai para caminhar em Botucatu. Eles caminham pela linha férrea e pelas estações de trem. Vão recolhendo o lixo deixado por pessoas irresponsáveis que não respeitam o meio ambiente e, ao mesmo tempo, dedicam parte do dia pesquisando sobre a história dos lugares onde passam. Juntos, eles fizeram um documentário de 50 minutos que conta como foram construídos dois túneis na Cuesta, entre 1945 e 1952.
No caminho, o grupo faz um contato muito próximo com a natureza, conta Antonio Carlos dos Santos, 63 anos. “Durante as caminhadas, a última foi de oito quilômetros, há muitas coisas interessantes. Conhecemos as bicas d’água, muitas nascentes. Tem pássaros diferentes, difíceis de encontrar na área urbana. Muitas vezes encontramos animais peçonhentos. No documentário temos uma cena em que é possível ver uma cascavel.”

A ideia de fazer um documentário nasceu o ano passado, durante uma caminhada, segundo Santos, que idealizou e fez a direção do vídeo. “Nós vamos caminhando e conversando. Muitas histórias sobre os túneis eram contadas. Como era a construção e de que maneira. Fui ganhando fotos e documentos da época. O material era muito grande e resolvemos fazer o documentário. Somos de 25 a 30 pessoas comuns. A última caminhada saímos do museu e fomos por estrada rural até os túneis. Constatamos que a ferrovia está abandonada. Só passa trem de carga.”
"Não apresenta uma trinca e nem rachadura. Uma qualidade incrível da arquitetura", Patrícia Shimabuku - Supervisora do documentário (foto)
Na serra de Botucatu tem dois túneis. “Um deles tem 642 metros e outro, 543. Fizemos o documentário dos dois. A distância entre eles é de três quilômetros e meio. Estamos contando a história com cenas, relato de homens que trabalharam na construção que ainda estão vivos. Dois deles deram depoimentos, os demais estão bastante debilitados pela idade.”
Patrícia Shimabuku, supervisora do documentário, diz que a construção causou sofrimento em muitos trabalhadores, mas que não há registro de mortos. “Há relatos de pessoas que sofreram muito. Os médicos trabalharam como apoio. O ‘Tonho do Rolo’, que era uma criança na época, comentou que nunca soube de mortes, mas muitos acidentes de trabalho. Ele mesmo pisou em um prego e teve que ser tratado.”
O acervo de fotos da construção e inauguração dos dois túneis totalizou cerca de 120, mas no documentário foram usadas 20 delas, as mais significativas. “O documentário não ficou extenso. Tem 50 minutos. A gente pensou em fazer algo que permitisse participar de concursos.”
A produção do documentário exigiu pesquisa e muito estudo por parte dos participantes que são pessoas comuns, enfatiza Shimabuku. “O Bicudo foi estudar a edição de imagens no computador. Felipe tinha mais experiência, porque já trabalha com filmagens. Ele tem um drone que permitiu a filmagem aérea. É um documentário que faz um resgate histórico, mas que também trata da parte de engenharia e arquitetura que por sinal foi muito bem trabalhada. Deixamos isso bem explícito isso. A gente mostra o morro por cima onde tem a natureza e mesmo depois de todo esse tempo, não apresenta uma trinca e nem rachadura. Uma qualidade incrível da arquitetura.”
Obra facilitou escoamento do café
Antigo traçado da Estrada de Ferro Sorocabana tinha muitas curvas e foi feita uma variante que corta a serra de Botucatu para as locomotivas elétricas
A construção dos túneis começou em 1945 e seis anos depois passou o primeiro trem de passageiro por eles, inaugurando a grande obra. A nova linha férrea atendia um novo traçado feito especialmente para atender as necessidades modernas para a época, explica o idealizador do documentário, Antonio Carlos dos Santos.

Trecho da Serra de Botucatu tem uma paisagem exuberante, onde ainda passa trem de carga
“A antiga linha estava com um traçado obsoleto cheio de curvas onde a Maria-fumaça andava bem, mas a máquina elétrica não. A empresa Sorocabana resolveu modernizar com a máquina elétrica que num traçado cheio de curvas não conseguiria imprimir maior velocidade. O trenzinho tracionado pela Maria-fumaça imprimia uma velocidade máxima de 40 quilômetros por hora. Com o novo traçado e máquina mais possante, percurso com mais retas, a velocidade era de 70 a 75 quilômetros por hora.”
Santos frisa que a Estrada de Ferro Sorocabana fazia um trajeto de São Paulo até Botucatu. “Era um trem que transportava cargas, especialmente café e passageiros. Tinha vagões de combustíveis e gondolas que transportavam carros fabricados em São Bernardo que atualmente são transportados por caminhões cegonheiros. Na época eram levados para muitos lugares de trem.”
No documentário há uma cena em que é possível ver várias Kombis sendo transportadas pelo trem da Sorocabana. “Na gravação tem uma cena que aparece as gondolas cheias de Kombis. Todos veículos zero-quilômetros que iam para o Paraná, Mato Grosso e passavam por aqui. Tudo que ia para Bauru ou para o Paraná passava dentro dos túneis.”
A próxima estação depois de Botucatu é a de Rubião Jr. “Onde tem a Unesp. Ali é a bifurcação. Do lado direito entra para Bauru e Mato Grosso do Sul. Para a esquerda vai para Avaré-Itatinga-Ourinhos e para o Paraná.”
A supervisora do documentário, Patrícia Shimabuku, explica que a cidade de Botucatu cresceu ao redor da ferrovia. “Botucatu tem várias empresas e a Unesp que levam o nome da cidade para fora do Estado, mas ela cresceu em torno da linha férrea, como a maioria das cidades do Interior do Estado de São Paulo.”
Ela explica que o traçado antigo era no pé da Cuesta (serra). “Lá tem um declive acentuado, a Maria-fumaça enfrentava problemas. Bem na Cuesta tem três rios. Em períodos de chuva tinha alagamento e o trem não podia passar. Inclusive teve um acidente com imigrante que passavam por ali, na época da colonização, da expansão do café. Nesse período, auge do café, precisava de transporte para escoar a produção.”
Para driblar os obstáculos, a Estrada de Ferro Sorocabana fez um novo traçado e teve que fazer os túneis. “Na hora de subir a serra no trecho da Alta Sorocabana por Botucatu a Maria-fumaça não ia conseguir subir. Então a empresa resolveu desenhar um novo traçado. Encontrou obstáculos, os dois morros. Foi por isso que ela fez essa perfuração e criou dois túneis.”
Terra e pedra eram carregadas no lombo de burros e ferramentas eram obsoletas
Atravessar uma rocha, na verdade uma montanha usando equipamentos hoje obsoletos, só machadinha e ferramentas de mão foi o primeiro obstáculo encontrado pelas construtoras dos túneis, comenta o idealizador do documentário, Antonio Carlos dos Santos.
“Foram feitas perfurações em uma montanha. Tudo feito no braço e no lombo de animais. Eram cerca de 30 burrinhos que carregavam a terra. Um funcionário enchia a carroça de terra, dava duas batidas de pá na roda o burrinho que saia sozinho. Lá na frente tinha mais um funcionário esperando o burrinho chegar. Despejava a terra, dava duas batidas na roda, e o burrinho voltar e entrava na fila dentro do túnel. Eles iam e voltavam dentro do túnel sem ninguém comandar.”
Segundo Santos, na época, crianças e mulheres trabalhavam. “As crianças tratavam os burrinhos, dando água e milho. Muitas vezes o animal parava no caminho e eles corriam e cutucavam o burrinho para ele continuar andando. Esse serviço era dado para as crianças porque elas não podiam pegar no pesado. Ter contato com as ferramentas. Eles trabalhavam 24 horas. Tinha o turno noturno.”
A supervisora do documentário, Patrícia Shimabuku, esclarece que existem seis métodos de perfuração de túneis. “Nos dois túneis de Botucatu foi utilizado um método que é a junção. Um hídrido entre o método francês e o inglês. Você tem o desenho do túnel, aquele meio círculo. Faz esse arco em vários quadrantes e ai em cada quadrante tem um jeito para perfurar, tirar a terra e a pedra,” explica Patrícia.
Segundo ela, o documentário mostra o levantamento topográfico que justifica a perfuração. “Mostramos as mudanças provocadas no relevo, no paisagismo e ambiental. Como também dentro da paisagem da própria cidade. Porque vieram pessoas de outros estados. Trabalhadores de várias partes do país vieram trabalhar nas obras.”
Como se estivesse em uma viagem de trem, o documentário mostra as ruínas das antigas estações, o traçado antigo e o novo, o método de escoramento, os animais que puxavam as carroças depois as máquinas que os substituíram e a cooperação das mulheres que ajudavam no trabalho.
Próximos passos
A supervisora do documentário, Patrícia Shimabuku, enfatiza que não teve patrocínio. “Nós mesmos bancamos o trabalho. A nossa proposta é todo mês apresentar na Semana Senac de leitura. Vamos ter duas edições no Senac aberto ao público e gratuito. No dia 27 às 10h e no dia 28 às 19h30. Pretendemos acertar a gravação em DVD, para participar de festivais.”
A equipe é formada por Antonio Carlos dos Santos, o “Nica”; Valdemar Bicudo edição e imagem; Felipe Pereira efeitos especiais; Patrícia Shimabuku na supervisão. A parte da locução foi de Jean Martins Vanessa. A prefeitura cedeu espaço para a exibição.
Primeira exibição foi na véspera do aniversário da cidade
As gravações do documentário começaram no ano passado.No último dia 13, véspera do aniversário da cidade, ele foi exibido ao público no antigo cine teatro de Botucatu. As tomadas iniciais foram feitas na empresa Petrac e antiga estação Belveder.
A estreia para as autoridades foi no último dia 11, comenta Patrícia Shimabuku. “Foi bastante prestigiada, porque muitos filhos e netos daqueles que trabalharam na Sorocabana ainda vivem em Botucatu. Fizemos questão de fazer a exibição no antigo cine teatro para valorizar o prédio. Contamos com cerca de 160 pessoas. Cerca de 148 assinaram o livro de presença, mas como tinha fila para assinar, muitos foram embora sem registrar a presença.”
O servidor aposentado dos Correios e amante da ferrovia Antonio Carlos dos Santos, o “Nica”, mantém uma maquete de ferrovia e um museu sobre o tema. Ele, por exemplo, tem um acervo de fotos antigas que resgata como foi construído os túneis na Serra de Botucatu, a chamada Cuesta.
Testemunha viva da obra do túnel
Antonio Gonçalves Ferreira, conhecido por “Tonho do Rolo”, trabalhou quando era pré-adolescente como guia das carroças tracionadas por burros

João Martins e “Tonho do Rolo”
Mineirinho de Belo Horizonte, “Tonho do Rolo” como é chamado em Botucatu ou Antonio Gonçalves Ferreira como está no registro de nascimento era só um pré-adolescente quando veio de Barbacena para trabalhar na obra dos túneis. Tem 86 anos e lembra com clareza o tempo que trabalhou na obra da Azevedo & Travasso.
“Tonho” é um baú de memórias, sabe tudo e tem muitas histórias para contar. Precisaria um jornal inteiro para relatar suas histórias cheias de detalhes. “Eu era pinante”, diz logo de início. Pinantes eram os meninos que trabalhavam na construção civil como guia de carrocinhas de aterro. Na sequência vai contando suas lembranças da época.
Ele tinha 11 anos quando começou a trabalhar junto com o pai e parentes que vieram para Botucatu. “Trabalhava meio período. No outro, ia à escola. Ganhava R$ 0,20 por hora. Enquanto os adultos trabalhavam com a picareta e pá quebrando e carregando as carrocinhas, eu cuidava de fazer os burrinhos levarem e voltarem para novo carregamento. Tratava os com água e milho.”
Cada trecho perfurado ou avançado requeria cerca de 300 viagens de carrocinha. “Quando chegava na rocha eram feitas as explosões. Dependendo da situação eram usadas dinamites ou mesmo pólvora granulada. Dava muito trabalho. Com pólvora não tinha tanto perigo, mas com dinamite a explosão era forte.”
De cada lado da montanha era colocada uma equipe de trabalho. “Quando elas se encontravam era uma festa. Sinal que estávamos chegando ao fim do trabalho. Muita gente foi picada por cobra. O trabalho noturno era pior, tudo feito com lamparinas. Tinha veterinário para tratar dos animais e médico que atendia os trabalhadores da obra. Quando a gente ficava doente, ele atendia e a firma descontava parte do pagamento.”
As mulheres trabalhavam na obra, ressalta “Tonho”. “As mulheres iam levar o almoço para os maridos e ficavam na obra. Elas peneiravam carvão. Ganhavam por metro de carvão recolhido, quebravam pedra com picareta. O pagamento delas e nosso acontecia duas vezes ao ano. Nos demais meses recebíamos um vale para retirar mantimentos no armazém. Quando queríamos dinheiro para ir ao cinema por exemplo, tínhamos que pegar alguma mercadoria lá e tentar vender na cidade. Eu pegava um pacote de banha. ”
“Tonho” lembra que quando a etapa das explosões e o trabalho com a picareta estavam vencidos, o local era cimentado. “Antes de começar a implantar os trilhos, quando os túneis estavam prontos foi feita uma festa de São João. As moças apareceram enfeitadas de flores e os barris de carne e cerveja cruzavam de um lado para outro. Foi um festa inesquecível.”
No final da obra, as picaretas e os burrinhos foram substituídos por um maquinário moderno. “Caçambas maiores, escavadeiras. Nessa época uma engenheira veio construir uma ponte metálica em Conceição, para que a água da chuva não inundasse a linha férrea. Construiu e ninguém acreditava que a ponte aguardava o trem a vapor. Na primeira vez que o trem passou sobre a ponte, ela ficou embaixo. Eu assisti a cena.”
Quando encerrou a obra, “Tonho” continuou a trabalhar em obras e se orgulha disso. “Trabalhei na construção do prédio da Prefeitura de Botucatu. Eu coloquei o primeiro tijolo. Depois aposentei pela prefeitura. Trabalhei com asfalto e como passava o rolo no asfalto, fiquei com o apelido de ‘Tonho do Rolo’”, relembrou.
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